Desde a pré-escola somos ensinados sobre a importância de se utilizar a água com responsabilidade. O que muitas pessoas não entendem é que nosso recurso natural mais valioso – e vital para a vida – é mais raro do que parece.
Apesar de o planeta Terra ter 75% de sua superfície coberta por água, apenas 3% desse volume é água doce. E não para por aí: desses 3%, uma pequena quantidade é acessível ao ser humano (em rios, lagos e lençóis freáticos), já que a maior parte desse volume está congelado nas calotas polares ou em lugares inacessíveis do planeta. A partir desses números é possível entender porque tanta preocupação com uso racional da água.
O Brasil pode ser considerado um grande manancial mundial. Detém cerca de 12% da água doce e acessível do planeta. Isso é mais do que o volume de todo o continente Europeu, que tem cerca de 10%. Apesar disso, crises hídricas e falta de água em determinados locais do país têm sido pautas cada vez mais frequentes. O que leva o país a passar por isso?
Em entrevista ao UOL, o geólogo Claudionor Araújo, do Conselho Estratégico do Instituto Hidroambiental Águas do Brasil, diz que “nenhum dos segmentos cuida bem [dos recursos hídricos]. Esse sistema é como um casamento, em que marido e mulher têm de cuidar bem da casa. Os governos, em regra, só correm atrás de tomar remédio quando a dor chega. Mas água temos. Sabendo usar, não vai faltar”, conclui.
Uso consciente em construções
Sem dúvidas, o setor de construção é um dos que mais utiliza água em suas atividades. O uso desse recurso é indispensável, mas há maneiras de utilizar a água na construção (e manutenção) de edifícios de maneira mais consciente.
Virgínia Sodré, diretora técnica da Infinitytech Engenharia e Meio Ambiente, acredita que “o uso racional da água deve entrar já no planejamento da obra”. Para ela, seria muito importante que o responsável já planejasse a obra prevendo o possível consumo de água e as possíveis ações para redução deste consumo. “Trabalhamos há dois anos atrás com uma grande incorporadora em que criamos uma metodologia de trabalho de gestão de pegada hídrica para as obras. Então juntamente com o planejamento da obra já saíamos com a previsão de consumo de água, e com ações mitigadoras para redução do consumo”, exemplifica.
Segundo Virgínia, 71% da população brasileira vive na região nordeste e sudeste, no entanto essas regiões possuem apenas 9% do recurso de água doce do país. Tais dados mostram a urgente necessidade de planejamento dos setores privado e público de modo a atender toda a população sem prejuízo ao desenvolvimento e, o mais importante, ao meio ambiente.
O trabalho em conjunto é fundamental para criar projetos que pensem no racional da água. As ações devem ser pensadas em um conjunto que envolve arquitetura, hidráulica e estruturas da edificação. “Devem ser previstos espaços físicos para a adoção de medidas e práticas de conservação de água, de forma que sejam previstas as infraestruturas necessárias para implantação e manutenção desses sistemas. É importante destacar a necessidade de realizar uma boa caracterização hídrica da edificação, para que seja realizado um bom balanço hídrico da edificação em conjunto com um estudo de viabilidade técnico e econômico detalhado para a escolha e definição das possíveis ações a serem adotadas. Tem que haver uma relação entre demanda e oferta de água importante, que viabilize o retorno sobre o CAPEX (custo de investimento) e o OPEX (custo de operação), que garanta o retorno sobre o investimento”, comenta Virgínia Sodré.
Nem só os novos edifícios podem se tornar inteligentes no uso da água. Construções já existentes também podem e devem, se adaptar com o auxílio de tecnologias que otimizam o uso hídrico na edificação. Isso começa com um trabalho de levantamento físico das instalações (caracterização hídrica da edificação), avaliando o balanço hídrico (detectando se não há consumo excessivo de água na edificação) e as possíveis intervenções a serem realizadas. “Assim como em edifícios novos a gestão da demanda é um dos primeiros pontos que devem ser levados em consideração na adoção de ações numa edificação. Um dos pontos de partida para adoção de ações em edificações existentes é a avaliação dos indicadores de consumo e a comparação com edifícios semelhantes para identificarmos se não há algum desperdício de água ocasionado por exemplo com vazamentos não visíveis”, explica Virgínia.
Adaptar edifícios existentes de modo a deixá-los mais sustentáveis têm sido uma crescente no mercado brasileiro. O GBC Brasil possui uma certificação dada a edifícios já existentes que, dentre outros pontos, analisa como o prédio está usando eficientemente os recursos hídricos. É o LEED EB O+M. Para mais informações sobre esse sistema do LEED procure a edição nº12 da Revista GBC Brasil.
Soluções alternativas
Algumas soluções relativamente simples, mas que geram rápido retorno, vem sendo adotadas por cada vez mais edificações. Reuso de água, por exemplo, se mostra uma alternativa interessante para alguns tipos de situações.
“O reuso se mostra viável principalmente em projetos que temos uma grande demanda de água não potável na edificação. Vejo muitos empreendimentos comerciais por exemplo adotando o reuso de águas cinzas (águas de torneiras e chuveiros), e a oferta de água nesse tipo de empreendimento costuma ser muito baixa. Dessa forma na maioria das vezes não há viabilidade mais por outras razões (as vezes o processo de certificação ambiental da edificação), leva ao incorporador a adotar este tipo de ação”.
Virgínia Sodré, diretora técnica da Infinitytech Engenharia e Meio Ambiente.
Outra alternativa, essa bem mais utilizada, é o reaproveitamento de água da chuva para atividades como limpeza e irrigação dos edifícios. Virgínia acredita que “o aproveitamento de água de chuva é uma solução com baixo investimento no que concerne custo de implantação versus custo de operação, e cada vez mais tem sido uma solução interessante que deve ser também estudada e projetada por um profissional qualificado”.
É importante frisar que soluções como reuso de água e reaproveitamento de água da chuva devem ser viabilizadas por profissionais capacitados, que analisarão se essas alternativas são interessantes (tanto do ponto de vista comercial, quanto ambiental) e darão o suporte técnico necessário para implantação das tecnologias. “É muito importante entendermos que a água seja potável ou não potável tem relação intrínseca com a saúde e bem-estar da população. Dessa forma devemos evitar soluções caseiras e procurarmos sempre seguir as normas e critérios de projeto para assegurarmos acima de tudo a saúde do usuário final deste sistema”, conclui Virgínia.
“Sustentabilidade e saúde devem trabalhar juntas, porque não adianta projetarmos um edifício dito sustentável, mas que não levou realmente a sério a questão da água e como ela pode afetar as pessoas que o utilizarão” pontua Marcos Bensoussan, especialista em segurança da água e planos de gerenciamento da água.
Legionella: um perigo silencioso mas real
Legionella é um gênero de bactérias que vivem na água, mas a sua proliferação se dá principalmente dentro do sistema predial, onde o ambiente é favorável para isso. Outro agravante da sua presença na edificação é que a contaminação dos usuários que acontece pela aspiração das bactérias, que podem ser lançadas no ar pelo sistema de refrigeração, por exemplo.
“A Legionella vive na água, em todo tipo de água. Ela pode estar presente em quantidades detectáveis ou não detectáveis. A contaminação humana se dá pela aspiração de água em que a Legionella esteja presente. Essa aspiração pode resultar em dois tipos de doenças. A primeira é uma Febre Pontiac, que é uma febre alta, um tipo de resfriado pesado. A segunda, mais grave, é a pneumonia, que leva muitas pessoas a morte. A grande dificuldade é que a Legionella vive na água, portanto não há como se evitar que ela exista. Ela só morre em águas com temperatura acima dos 65°C”, diz Marcos Bensoussan, Strategic Business Manager, Building Water Health da NSF International, também escreveu um livro sobre segurança da água e outro sobre as bactérias Legionella.
Em casos mais extremos a contaminação por essa bactéria pode até levar à morte. Embora seja pouco conhecida, estima-se que a Legionella mata cerca de 8 mil pessoas por ano só no Brasil, segundo o especialista Marcos Bensoussan. “O que é preocupante não é a quantidade de casos que acontecem, mas a nossa falta de conhecimento sobre o que está acontecendo. Muitas vezes a Legionella é diagnosticada como virose, mas não sabemos se essa suposta virose foi causada pela bactéria ou outras coisas, a gente não tem conhecimento e nem ferramentas para averiguar, ou seja, falta abordagem técnica”, afirma Marco Yamada, diretor da Axion Engenharia.
Há diversas maneiras de fazer a prevenção da contaminação pela bactéria, em geral cada caso deve ser analisado individualmente. Existe um método chamado APPCC – Análise de Perigos e Pontos Críticos de Controle, uma metodologia que analisa quais são os pontos críticos dentro do sistema, os riscos que ele oferece ao usuário e a maneira de abordar cada um desses pontos críticos. Com o intuito de garantir a qualidade da água foi desenvolvido o Plano de Segurança da Água.
“O Plano de Segurança da Água, é uma proposta elaborada para mitigar e minimizar os riscos que a água pode provocar na questão da saúde das pessoas. Isso vale tanto para a água que você bebe, quanto aquela que você aspira e aquela que tem contato com sua pele. Nesse plano faz-se uma avaliação de risco do edifício. Os riscos podem ser físicos, químicos e microbiológicos. Quando falamos de físicos, estamos falando de temperatura da água. Riscos químicos envolvem, por exemplo, radioatividade e contaminação por produtos químicos na água. Já os riscos microbiológicos envolvem toda a parte de bactérias e outros micro-organismos que podem provocar doenças”.
Marcos Bensoussan, Strategic Business Manager, Building Water Health da NSF International
A portaria 29 14 do Ministério da Saúde exige que todo edifício deve fazer o plano de segurança da água. Mas, segundo Marcos Bensoussan, “infelizmente parte considerável das pessoas não o fazem. E não fazem porque não cumprem a lei. Acredito que mais do que fiscalização e punição, deve haver um trabalho de conscientização das pessoas quanto a importância do assunto, e a mídia tem um papel importante nisso”.
Além disso, a ABNT criou uma comissão de estudos e prevenção da Legionella em edificações, onde a sua proliferação é mais propícia, conta Yamada, que também atua como secretário da comissão. “A Comissão de Estudo de Prevenção de Patogenias na Distribuição de Água em Edificações está trabalhando para direcionar o mercado e aqueles que têm intenção de adotar as prevenções. As normas (em fase de estudos desenvolvidos pela Comissão) é baseada na Norma de Prevenção a Legionella dos Estados Unidos, mas o nosso ponto central é um pouco diferente da deles, que é focada principalmente em ar condicionado, nós mesclamos as necessidades nacionais de maneira a ver o edifício como um todo com as necessidades já desenvolvidas internacionalmente”.
“É importante que o mercado se conscientize, a Legionella é uma realidade. Por mais que a situação não seja crítica, precisamos de conhecimento sobre o assunto. O fato é que não conseguimos identificar o problema, não sabemos exatamente o que a Legionella é, e quais são os riscos. Isso é o ponto crítico, principalmente porque nos últimos anos algumas concepções prediais mudaram, algumas delas podem acabar criando condições onde a contaminação pode acontecer com mais facilidade, é caso do sistema de aquecimento solar. Então, a gente tem que ter mais conhecimento para não correr o risco de solucionar um problema e acabar criando outro”, finaliza Marco Yamada.