Preservar a água é fundamental para a sustentabilidade. Mas também um desafio enorme para todos. Políticas conflituosas, falta de conscientização e excesso de poluição são alguns dos problemas no caminho.
Entre 19 e 23 de março, o portal Going GREEN Brasil celebra o Dia Internacional da Água (22/3) com uma série de reportagens sobre a importância deste recurso vital para a vida humana e a sustentabilidade. Falaremos sobre questões ambientais, uso nos edifícios, gestão hídrica e empresas que oferecem soluções inovadoras envolvendo a água. Clique aqui para ver os conteúdos já publicados e ajude a promover o uso sustentável da água em todos os momentos.
Em pleno século 21, é difícil falar da importância da água sem soar redundante. Constantes problemas no abastecimento, acesso e tratamento da água, no entanto, tornam a tarefa inevitável. Como tornar a água disponível para todos? Como, de fato, conscientizar todos sobre a urgência dessa questão?
O problema ocorre no Brasil e também no exterior. Na última semana, ao comentar o lançamento de uma nova agenda para o uso sustentável da água em um painel internacional em Nova York, o secretário-geral da Organização das Nações Unidas, o português António Guterres, destacou que “o mundo enfrenta uma crise de água e é preciso reavaliar como se valoriza e gere” este recurso. O documento alerta que 700 milhões de pessoas em todo o mundo correm risco de serem deslocadas devido à falta de água até 2030.
Não é exatamente uma novidade. Sabe-se que, apesar de praticamente três quartos da Terra estarem cobertos por água, apenas 3% são de água doce e, desta parcela, uma quantidade ainda menor está disponível para as mais de 7 bilhões de habitantes humanos da Terra, com o restante congelado em calotas polares. Por tudo isso, 40% da população mundial é afetada por falta de água e mais de dois bilhões de pessoas bebem água insegura para consumo, com 4,5 bilhões não tendo acesso adequado a serviços sanitários, segundo a ONU. Mesmo cidades desenvolvidas, como São Paulo, em 2014, e Cidade do Cabo, na África do Sul, atualmente, passam por problemas sérios, obrigando populações a esforços extremos para não ficar sem água, e correndo maior risco de contaminação por diversas doenças.
O Brasil, teoricamente, poderia se considerar em uma posição privilegiada. Afinal, detém 12% da água doce disponível no planeta. Mas desequilíbrios ambientais, fatores climáticos e a falta de uma gestão integrada da rede hídrica fazem com que os problemas aqui envolvendo a água sejam constantes.
“No Brasil, 64% de água doce está na região Norte, onde ficam apenas 3% da população. No Sudeste eu tenho 6% da água doce, no Nordeste, 3%, mas 71% da população brasileira está nessas regiões, que são de grande densidade populacional. São regiões em que, ao colocarmos uma lupa, vamos ver que falta água para a demanda que há”, explica a fundadora da Infinitytech, empresa de gestão ambiental e de recursos hídricos, Virgínia Sodré.
Com a baixa disponibilidade de águas fluviais, resta torcer pelas chuvas. E, se no Sudeste elas dificilmente deixam os reservatórios secos – ainda assim com exceções graves, como a crise de 2014 em São Paulo – no Nordeste, o problema é mais sério. Segundo o último relatório de conjuntura da água divulgado pela Agência Nacional das Águas (ANA), 18 milhões de brasileiros foram afetados por secas e estiagens no país em 2016, sendo, desse total, 84% nordestinos. Contando o período entre 2013 e 2016, foram 48 milhões de cidadãos sofrendo com falta de chuvas.
E, embora essa situação seja conhecida e venha de muito tempo, pouco foi feito ao longo dos anos para se preparar para as temporadas sem chuvas. Pelo contrário, ainda se cuida mal da água disponível. “Cerca de 40% da água usada no Brasil é desperdiçada. O equivalente a R$ 8 bilhões, que é mais do que os R$ 7 bilhões que se investe, anualmente, em saneamento”, descreve Virgínia.
Uso da água
Se para muita gente água é recurso escasso, não se pode dizer o mesmo da disponibilidade dela para os produtos agrícolas. No Brasil, são retirados de mananciais pouco mais de 2 mil litros de água por segundo, e 46% ocorre pelas atividades de irrigação no campo. O abastecimento urbano fica com 23,2% e o rural com apenas 1,6%. Veja abaixo no gráfico da ANA:
Quando se fala de consumo de água, no entanto, a parcela do agronegócio sobe para 67%, e o abastecimento urbano cai para 8,8%. Números que seguem o modelo econômico do país, de exportador agropecuário, de acordo com a ANA.
Com pouca água disponível e distribuída e forma irregular por um país continental como o Brasil, é necessária uma gestão integrada que considere as necessidades de cada região. É por isso, explica a especialista da Infinitytech, que foi criada em 2000 a ANA. “A gestão da acontece em três níveis – macro, intermediário e micro -, sendo o nível macro, que é a gestão das bacias hidrográficas e criação de políticas públicas, o primeiro deles. A ANA veio pra trazer essa gestão a nível macro dos recursos hídricos brasileiros.”
O problema é que, além de recente, essa estrutura criada ainda não foi conectada à gestão local de forma aperfeiçoada, segundo ela. “Precisamos ter políticas claras para essa gestão. A ANA designou a criação dos comitês de bacia, que tem o poder conceder estudos, fazer regulamentos locais, leis, politicas de gestão local das bacias, recuperação de manancial, etc – além de fazer a arrecadação de taxas cobradas pela retirada de água dos mananciais. Mas nem todas as bacias tiveram esse comitê criado e as respectivas agências locais. E alguns foram feitos apenas recentemente”, lamenta.
Um caso emblemático, aponta, é o da bacia do rio Tietê, que corta São Paulo de leste a oeste e é extremamente poluído. “Ali, o comitê já existe há bastante tempo, mas só há cerca de três anos foi instituída a cobrança [pela retirada de água dos mananciais] para investimentos no saneamento do rio. Isso configura um agravo se pensarmos na poluição que existe no Tietê”, diz.
Disputas
A distribuição desigual da água e da população brasileira, como mencionado acima, somada à falta de gestão integrada dos recursos, acaba gerando situações de conflito, como após a crise hídrica paulista de 2014. Em seu plano de ampliação dos reservatórios para evitar situações semelhantes, o governo de São Paulo entrou em disputas com os do Rio de Janeiro e Minas Gerais por causa do rio Paraíba do Sul, que nasce em território paulista, mas passa também pelos dois vizinhos. No plano de desviar parte da água do rio para a bacia do Sistema Cantareira, os fluminenses sentiram-se prejudicados, já que a bacia do rio abastece a região metropolitana do Rio de Janeiro.
“Por isso tudo, a gestão de água tem que ter uma integração, com participação das cidades, da agricultura, de todos agentes envolvidos. Como no caso do Paraíba do Sul, que São Paulo praticamente tentou tirar do Rio de Janeiro, e essa operação pode causar um desabastecimento. Esse tipo de conflito cada vez mais vai ser presente, se continuarmos assim”, prevê Virginia.
Não priorizar essa gestão eficiente não só leva a problema ambientais e urbanos, mas também acaba sendo oneroso para o Estado e para os contribuintes, por consequência. “A cada um real investido em saneamento, quatro são economizados em saúde. E costumamos reclamar da saúde mas não cuidamos do que gera problemas de saúde. O rio Tietê é um esgoto a céu aberto, exemplo clássico do que acontece nas grandes cidades. E com isso se acaba investindo em captação da água em lugares mais distantes, com maior curso energético, etc. É pior para todos”.
Para completar, a água é tratada, muitas vezes, como negócio, e as necessidades econômicas das empresas e entidades envolvidas comumente são colocadas na frente das questões humanas e ambientais. Novamente em São Paulo, para repor os gastos realizados com a crise hídrica, a Sabesp propôs adotar um “gatilho automático” que garanta certo nível de receita com o abastecimento de água à população – a depender do nível de consumo, a água muda de preço. Na prática, porém, a ideia puniria quem economizar água: consumindo menos, ela se tornaria mais cara, para garantir o lucro da companhia. Depois de muitas críticas recebidas, a Sabesp comentou que se trata apenas de uma ideia em análise, mas não descartou sua implementação.
É verdade que a situação já foi muito pior – afinal, a ANA e os programas integrados de gestão nem existiam até 15 anos atrás, como lembra Virgínia Sodré. “Desde então tivemos uma melhora significativa. Mas ainda falta muito.”