Técnicas de dessalinização são utilizadas principalmente em estados da Região Nordeste, onde a seca ainda é um dos principais problemas.
A dessalinização de águas salobras e salinas não é uma novidade nos territórios do semiárido brasileiro. É de se imaginar que, com um litoral tão vasto, o Brasil utilize a tecnologia de dessalinizadores para a purificação e o aproveitamento da água para abastecimento das comunidades que sofrem com a seca, principalmente na Região Nordeste.
Com a diminuição do acesso à água de boa qualidade praticamente no mundo todo, por uma série de razões, a dessalinização de corpos de água tornou-se fator fundamental em muitos países. Em alguns, como nos Emirados Árabes Unidos, a dessalinização da água do mar é o que mantém tudo em funcionamento, seja para uso industrial, agrícola e saúde, seja para consumo geral da população.
Mas, qual o panorama atual da dessalinização e suas técnicas em nosso País? A Agenda dos 100 Primeiros Dias do atual Governo Federal contempla o desenvolvimento e uso eficiente da dessalinização de águas salobras e salinas.
O presidente Jair Bolsonaro, ainda antes de tomar posse, anunciou que pretendia firmar parcerias com Israel sobre o tema, principalmente para beneficiar a agricultura nos estados do Nordeste. No entanto, o Brasil realmente precisa importar tecnologia na área? A resposta mais plausível é que os dessalinizadores não são novidade no sertão e já abastecem várias comunidades.
De acordo com Kepler Borges França, professor de engenharia química da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e responsável pela coordenação do Laboratório de Referência em Dessalinização (LABDES), a futura parceria com Israel é importante, porém, é preciso mais investimento por parte do Governo Federal para incentivo e desenvolvimento de tecnologias nacionais, que inclusive têm um custo mais vantajoso.
Segundo França, foram instalados de 3.500 a 4 mil dessalinizadores no Brasil ao longo das últimas três décadas. Um outro exemplo está em Fernando de Noronha (PE), que apresenta um sistema de dessalinização para atender à infraestrutura da ilha.
Não há dúvida de que Israel tem o domínio dos processos de dessalinização, e também da sua utilização em potabilização e irrigação, porém, as realidades dos dois países são bem diferentes.
“O Nordeste, por exemplo, tem uma área aproximadamente 75 vezes maior que Israel e uma população seis vezes maior. Estes aspectos devem ser levados em consideração, porque o que pode dar certo lá, pode ser inviável no Nordeste, isso sem considerar os fatores sociais, econômicos e políticos”, afirma Joaquim Marques Filho, presidente da Água Engenharia, empresa especializada na implantação de projetos para tratamento de água, efluentes e reúso.
Para Marques Filho, o maior ganho de uma futura parceria com Israel seria na gestão e integração entre os sistemas de dessalinização e os consumidores finais, uma vez que do ponto de vista tecnológico, os dois países dispões das mesmas tecnologias.
O presidente da Água Engenharia lembra ainda que as questões políticas sempre influenciam na tomada de decisão e na implantação de qualquer programa governamental, ainda mais com o impacto e a amplitude que o Governo Federal tem prometido para a Região Nordeste.
“Vale lembrar também que o custo de dessalinizar a água é maior do que o tratamento convencional de água superficial ou de um reúso, por exemplo. Mas, a questão aqui é resolver a falta de água em uma região que não há disponibilidade de água doce, então acaba se tornando uma alternativa viável, além do mais, o custo relativo aos sistemas de dessalinização tem caído nos últimos anos em função da escala que os projetos têm tomado no mundo todo”, ele diz.
De acordo com Joaquim, o estado de São Paulo tem uma situação hídrica muito mais favorável que as regiões áridas e semiáridas como Israel e o Nordeste brasileiro. Neste sentido, por uma questão de custo de implantação, a utilização de uma usina de dessalinização deveria ficar em segundo plano.
“Antes disso deveria ser pensado o investimento no uso racional da água, perdas na rede de distribuição, campanhas de conscientização. É um absurdo que ainda se lavem calçadas com água potável. Além do reúso de efluentes tratados, inclusive para fins potáveis, como acontece hoje nos estados norte-americanos da Califórnia e do Texas, ou na Namíbia, para citarmos alguns exemplos”, ele destaca.
Osmose Reversa
No semiárido brasileiro, aproximadamente 70% de sua área é coberta pelo chamado escudo cristalino, constituído por rochas magmáticas que armazenam água em forma de bolsões em suas fraturas, sendo que estas, na maioria das vezes, são ricas em sais, tornando-as impróprias para o consumo humano e muitas vezes de alguns animais.
Para Luiz Carlos Hermes, pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), estes sais podem ser removidos por sistemas de dessalinização, hoje muito comum, com uma técnica chamada de Osmose Reversa. Estes sistemas separam uma parte do líquido – cerca de 50% –, formando água de primeira qualidade para consumo humano. Já a outra parte, mais concentrada em sais, é por muitos considerada um rejeito.
“No nosso ponto de vista, em pesquisa na Embrapa, este rejeito deve ser entendido como recurso, uma vez que pode ser utilizado na produção de peixes, que fertilizam a água e, posteriormente, a mesma pode ser utilizada para plantas que convivem e usam o sal no seu metabolismo ou plantas tolerantes ao sal, de modo a servirem como reserva forrageira estratégica para uso em pequenas propriedades do semiárido”, afirma Hermes.
Desta forma, o pequeno produtor que pratica a agricultura dependente de chuva, de modo tradicional, pode ter um aporte de produção durante o período de seca, com capacidade de manter, dependendo da área, acima de 70 cabeças de caprinos e ovinos com apenas 1 hectare de forrageiras.
Ao passo que se usar o sistema tradicional, de cria extensiva, jamais conseguiria esta produção, uma vez que a capacidade de suporte da caatinga para manter estes animais é muito baixa, estimada de 1 a 1,5 hectares para apenas um animal.
“Com isso, ao manter os animais próximos à fonte de alimentação, estará fornecendo espaço de repouso e manejo ecológico da caatinga, permitindo sua regeneração. E o produtor tem material para ofertar ao mercado regional, justamente quando este mais precisa, na época de seca”, diz o pesquisador da Embrapa.
Ainda de acordo com Hermes, a sustentabilidade aparece quando o pequeno produtor, em uma região onde tudo é difícil, mas, viável, consegue manter sua família e ainda distribuir ao mercado via entidades – como as cooperativas – o fruto de seu trabalho, de forma continuada.
“Isso garante escala de produção, crédito e acreditação e tem a possibilidade, com a caatinga em revitalização, de estruturar a propriedade para armazenamento de água subterrânea, e reutilizar ou manejar a ecossistema de forma sustentável”, conclui.
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Programa Água Doce (PAD)
O Programa Água Doce (PAD) é uma ação do Governo Federal, coordenada e incorporada recentemente pelo Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) em parceria com instituições federais, estaduais, municipais e sociedade civil, que visa estabelecer uma política pública permanente de acesso à água de qualidade para o consumo humano, incorporando cuidados técnicos, ambientais e sociais na implantação, recuperação e gestão de sistemas de dessalinização de águas salobras e salinas.
Lançado em 2004, o PAD foi concebido e elaborado de forma participativa durante o ano de 2003, unindo as questões social, proteção ambiental, envolvimento institucional e gestão comunitária local.
“O Programa Água Doce, que consiste na dessalinização de águas subterrâneas, é importante para o atendimento de comunidades rurais difusas. Anteriormente, a iniciativa estava sob a gestão do Ministério do Meio Ambiente. A ideia é que novos sistemas de dessalinização sejam instalados onde houver viabilidade técnica e disponibilidade hídrica, ofertando água de forma duradoura às famílias”, diz o Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) em comunicado.
Segundo o Ministério do Meio Ambiente, que coordenava o programa no Governo anterior, dos 1.200 dessalinizadores, 924 já foram contratados. Há 575 em funcionamento, 147 em obras e 202 estão prestes a iniciar o processo de implantação, de acordo com dados de dezembro do ano passado.
Plano Nacional de Segurança Hídrica
O Ministério do Desenvolvimento Regional prevê investimentos de R$ 25 bilhões em 114 obras estruturantes para ampliar o abastecimento de água no País. Do total de projetos, 66 estão na Região Nordeste, área que mais sofre com a seca. As iniciativas fazem parte do Plano Nacional de Segurança Hídrica (PNSH), em elaboração pela Agência Nacional de Águas (ANA) e que deverá ser lançado em abril deste ano, durante a cerimônia dos 100 Primeiros Dias do Governo Federal.
O Plano vai priorizar intervenções estruturantes e estratégicas em todo o Brasil – contemplando obras dos estados e da União. Estão sendo mapeadas infraestruturas como barragens, sistemas adutores, canais e eixos de integração, todas consideradas necessárias à oferta de água para abastecimento humano e o uso em atividades produtivas.
O PNSH também leva em conta os vários aspectos climáticos do País, desde estiagem às cheias. O Governo Federal priorizará a conclusão dos empreendimentos que já estão em andamento.
“O aproveitamento da água do mar como fonte hídrica também é uma tecnologia em estudo pelo PNSH. Com isso, cidades litorâneas, muitas vezes dependentes de reservatórios de outras localidades nos estados, poderão ser abastecidas com água marinha dessalinizada. Dessa forma, os mananciais do interior seriam preservados, permitindo maior capacidade de atendimento às demandas hídricas da população local”, destaca o MDR em nota.
Portaria de nº 888/2019
No último dia 08 de março, o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) publicou a Portaria de nº 888/2019, que institui o Programa de Apresentação de Unidades de Dessalinização e Purificação de Águas Salobras e Salinas para Testes e Análise de Desempenho.
O objetivo do Ministério é reunir nos próximos meses, em um único banco de dados, as inúmeras informações existentes sobre as tecnologias e métodos de dessalinização. Os fabricantes e importadores, inclusive, poderão inscrever as unidades de dessalinização e purificação de águas salobras e salinas através de um endereço eletrônico fornecido pelo MCTIC.
Centro de Testes de Tecnologias de Dessalinização (CTTD)
Seguindo as diretrizes do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, um dos desafios da atual gestão é apoiar o desenvolvimento e uso eficiente da dessalinização de águas salobras e salinas. Para isso, foi criado o Centro de Testes de Tecnologias de Dessalinização (CTTD).
O programa será sediado no Instituto Nacional do Semiárido (INSA) e tem como meta “testar, analisar e avaliar o desempenho de sistemas comercializáveis de dessalinização e purificação de águas salobras e salinas, com intuito de prestar suporte na dimensão tecnológica, com ações e processos correlacionados à expansão do acesso à água potável, dessalinizada e purificada com foco no semiárido brasileiro”, diz o INSA.
O CTTD apoiará na dimensão tecnológica o Programa Água Doce (PAD) e outras diretrizes de processos relacionados com o universo do acesso à água no semiárido do Brasil.
O Centro de Testes utilizará as infraestruturas laboratoriais do INSA e da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) por intermédio do Laboratório de Referência em Dessalinização (LABDES).
Para Salomão de Sousa Medeiros, diretor do INSA, a implantação do CTTD é um desafio para o Instituto. “A gente avalia que a dessalinização de água no semiárido vem como uma forma de contribuir com a segurança hídrica da região e, em especial, das populações rurais difusas sem acesso a água potável. A dessalinização de água mudará para melhor a vida dessas pessoas”, afirma.