Engenheira civil, mestre e doutora em Tecnologia e Gestão da Produção, Ana Rocha Melhado está à frente da proActive Consultoria.
A real relevância do Dia Internacional da Mulher – instituído oficialmente pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 8 de março desde 1975 – está no reconhecimento da luta feminina por igualdade de gênero e a conquista de direitos em todos as camadas da sociedade. Ainda há muito o que evoluir, porém, é importante olhar para os bons exemplos que temos no dia a dia.
Para celebrar esta data, o Going Green Brasil traz três entrevistas exclusivas com mulheres que atuam no setor da construção e arquitetura, contribuindo não apenas para o desenvolvimento sustentável do País, como, também, para o fortalecimento da presença feminina em cargos de liderança e de destaque.
Nossa terceira personagem é Ana Rocha Melhado, diretora da proActive Consultoria. Ela é engenheira civil, mestre e doutora em Tecnologia e Gestão da Produção pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP), além de pós-doutora em Projetos e Construção de Bairros Sustentáveis pelo Departamento de Engenharia de Produção da EPUSP.
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Ana Melhado participou da equipe técnica que adequou a certificação sustentável francesa HQE para a realidade brasileira, sendo parte fundamental dos 10 anos do AQUA-HQE no Brasil. Atuou como pesquisadora pela Université Pierre Mendès France – UPMF, em Grenoble, e na Société d’Étude, de Maitrise d’Ouvrage et d’Aménagement Parisienne – SEMAPA, em Paris, durante o desenvolvimento do doutorado e pós-doutorado.
Ela também é membro do Conselho Deliberativo do GBC Brasil Casa e Condomínio, do Grupo do Pacto Global do CRASP e do Grupo de Estudos ConectiCidade – Laboratório de Cidades, Tecnologia e Urbanismo do Departamento de Engenharia de Produção da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (PRO Poli-USP). Além de ser professora titular do curso de engenharia civil da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP).
Conversamos com Ana Rocha Melhado sobre a sua trajetória, o papel da mulher na área da engenharia e como a sustentabilidade está envolvida em seus projetos na proActive.
O mercado e a sociedade estão muito mais atentos com a questão da sustentabilidade.
Quando você decidiu que iria ingressar na área de engenharia civil? Desde jovem sempre tomou gosto por edificações?
Eu sempre gostei de engenharia e arquitetura desde criança. Aos 9, 10 anos de idade, a minha brincadeira favorita era fazer uma planta baixa de um quarto e ficar tentando decorá-lo. Sempre com o viés mais para arquitetura do que para engenharia.
Quando entrei no ensino médio, tinha a opção de fazer o colégio normal, mas aí minha família não era financeiramente abastada e não foi possível cursar uma escola particular. Decidimos ir à escola pública e acabei optando por fazer um curso técnico de Edificações. Ao entrar neste curso, a tendência é ir para a área de engenharia e arquitetura, que são cursos mais técnicos do que um de produto. E as oportunidades de estágio durante a escola técnica foram mais para empresas de engenharia do que de arquitetura.
Entrei na escola técnica com 13 para 14 anos e comecei a trabalhar com engenharia civil aos 16 anos, já em uma empresa voltada para uma engenharia de incêndio e hotelaria. No ano seguinte entrei na construtora Queiroz Galvão, no departamento de planejamento e orçamento de obras pesadas como barragens, estradas, viadutos e pontes. Ainda dentro da empresa, comecei a trabalhar no mercado imobiliário.
Quando concluí o curso na escola técnica – 3 anos e meio –, já tinha cerca de seis anos de experiência no mercado da construção. Decidi cursar Engenharia Civil no Recife (PE) e quando estava para me formar, no último ano, tive a oportunidade de ir para o canteiro de obras e, ao chegar lá, me assustei bastante com a realidade naquela época, em 1989. Porque fazíamos planejamento, orçamento, desenvolvimento de projetos no escritório e quando chegava na obra tudo mudava e as decisões eram tomadas por conta própria.
Continuei como engenheira residente de obra por mais dois anos e depois de formada tomei a decisão de vir para São Paulo para estudar academicamente, por meio de mestrado, doutorado e pós-doutorado e descobrir como o mercado poderia melhorar a interface projeto-obra.
Então, sempre fui apaixonada pelas áreas de arquitetura e engenharia e busquei, por meio dessa paixão, integrar essas duas importantes profissões que temos no mercado.
Qual a fórmula ideal para unir arquitetura, engenharia e sustentabilidade em um projeto?
É uma fórmula mais lógica do que a gente imagina. Precisamos de uma mudança de cultura. Na hora que vamos idealizar um produto, o processo tradicional convida primeiro o arquiteto, pois ele que desenha, faz o projeto de massa, tem a sua criatividade. Mas, vem dissociada da necessidade da engenharia, da operação em uso, do dia a dia do usuário. Está muito focada em uma plástica, no artístico e menos na integração com a parte técnica.
Se for propor algo mágico para resolver isso, na hora da contratação de um projetista de arquitetura para desenvolver um produto, deve-se mudar isso e contratar uma equipe multidisciplinar. Evidentemente que se inicia os primeiros traços com arquitetura, mas não se avança esse produto apenas com ela.
Já desde os estudos iniciais é preciso ter as partes elétrica, hidráulica, paisagismo, acústica, entre outras disciplinas que são necessárias e que, normalmente, entram no processo no momento equivocado, meio tardio, quando o produto está muito desenvolvido e temos limitações para colocar soluções de sustentabilidade.
As pessoas estão mais preocupadas com a sustentabilidade no momento de comprar um imóvel?
Sem dúvida que sim. O mercado e a sociedade estão muito mais atentos com a questão da sustentabilidade e, não só para o produto da edificação imobiliária, na hora de comprar um apartamento, mas também para alimentação, deslocamento. A sociedade está muito focada em qualidade de vida.
A qualidade de vida depende da qualidade das cidades. E a qualidade das cidades depende da qualidade do edifício construído e do espaço urbano. Este é o valor que tem sido cobrado pela sociedade.
Hoje, na compra de um apartamento e empreendimentos que têm condições sustentáveis, se fizermos uma enquete sobre o por que a pessoa veio comprar este apartamento, 100% das respostas serão: não cresci em um ambiente saudável, quero proporcionar para a minha família e para os meus filhos um espaço mais saudável.
Atualmente no Brasil, como você enxerga o tema da sustentabilidade na evolução de um projeto? Estamos abaixo de países da Europa e também dos Estados Unidos?
O Brasil é considerado, atualmente, o quinto país em certificações ambientais, se formos olhar pelo processo de certificação LEED. Pelo AQUA-HQE estamos na terceira ou quarta colocação. Mas, apesar de estarmos em boas colocações nos rankings, temos uma defasagem enorme em relação aos países que lideram essas questões, como Estados Unidos, Canadá, Alemanha e França, por exemplo.
Nós temos condições de estarmos no ranking porque temos tecnologia para isso. Porém, temos um enorme paradigma que é o preconceito de que a sustentabilidade ao invés de trazer benefícios e, de fato, criar uma relação de ganho para todos os envolvidos, acredita-se que a mesma é mais cara. Em função disso, existe um gap enorme entre a evolução no conceito de sustentabilidade em países da Europa e da América do Norte e o Brasil.
Infelizmente estamos atrasados neste tema. Os edifícios que executamos no Brasil não apresentam diferenças de padrão dos edifícios executados no exterior, quando estes são certificados. Mas, isso em São Paulo, representa ainda 1% de todo o mercado imobiliário, é muito pouco. Apesar de estarmos na quarta ou quinta posições do ranking mundial.
Nos últimos 11 anos em que trabalho com projetos sustentáveis, todos os balanços dos empreendimentos foram positivos.
Quais são as práticas sustentáveis que você leva em conta quando está elaborando um novo projeto?
Um dos itens mais importantes no começo da elaboração de um projeto é o posicionamento da edificação no terreno. Isso dá as condições bioclimáticas daquele entorno, bairro e local. Quando você consegue desenvolver um projeto de arquitetura que na sua base já considera insolação, ventilação, iluminação natural por meio de aberturas de janelas, é possível dar um grande passo na questão do desempenho sustentável daquele empreendimento. Sem dúvida alguma, o primeiro passo é desenvolver o produto de arquitetura com soluções bioclimáticas.
Os segundos e terceiros passos, a partir daí, buscam soluções que melhorem o conforto térmico. Mais uma vez entra o projeto de arquitetura. Trabalhar uma envoltória nas cinco faixadas que sejam adequadas, também, à questão da insolação. Têm faixadas que recebem mais luz solar, outras que recebem menos, não necessariamente eu tenho que precificar o mesmo processo construtivo ou o mesmo tipo de material. Eu tenho que adequar o meu projeto de arquitetura à posição do nascer e do pôr do Sol.
Em questões da engenharia, adequada à uma iluminação natural, um projeto de iluminação artificial adequado, com densidade de potência correta, também irá trazer ganhos para a saúde, pois a iluminação artificial não vai prejudicar a qualidade visual do usuário e ao mesmo tempo representa uma redução do uso energético de 10% a 15%.
Sem falar que em edifícios residenciais existem soluções para a água. Soluções simples, como bacias de dual flux, equipamentos com redução do consumo de água, por exemplo, arejadores, restritores de vazão, medição individualizada de água. São soluções extremamente simples que não necessitam de espaço, que é um problema quando falamos em sustentabilidade. Tal solução é adequada, como utilizar uma placa solar, uma placa fotovoltaica, mas vou perder área. Aí tem a discussão do que é melhor e o que não é.
Portanto, vamos deixar essas tecnologias como reúso de águas cinzas, reúso de águas negras para um segundo patamar. Pois existem questões técnicas, de projetos e até normativas. Mas, essas soluções são muito básicas, não aumentam o custo da obra e podem levar à uma redução de consumo energético de 25% e uma redução de consumo de água entre 30% e 40%, sem incremento de custo na construção. Simplesmente por ter uma boa solução do projeto de arquitetura e especificações adequadas para iluminação e mecanismos para o funcionamento da questão da água na edificação.
Como é possível obter equilíbrio social e econômico em um projeto?
Para ser sustentável, obrigatoriamente, é preciso caminhar junto. Eu não posso dizer que uma edificação é sustentável se não tiver retorno econômico. Da mesma forma, não considero uma edificação sustentável se não houver respeito ao meio ambiente e ao aspecto social. O que precisamos é fazer a conta de forma diferenciada.
Meu empreendimento tem uma vida útil de quanto? Para ele funcionar e ser viável economicamente, a minha solução sustentável precisa dar um payback de quanto tempo? Vamos fazer essa conta. Ou uma outra linha de raciocínio: uma construção tradicional, sem levar em conta os requisitos de sustentabilidade, gera quanto de desperdício no canteiro de obras? Tanto de tempo, como de material. Se eu for implementar uma solução sustentável, tenho que mensurar qual é o ganho, tanto de produtividade, como de redução de desperdício de material.
Então, é preciso fazer a conta de quanto custa a minha solução sustentável, acrescentando mais no meu orçamento, quais os benefícios dela. Nos últimos 11 anos em que trabalho com projetos sustentáveis, todos os balanços dos empreendimentos foram positivos. Eu não tenho uma obra que apresentou um balanço negativo.
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Você vislumbra o mercado brasileiro evoluindo no que diz respeito aos certificados sustentáveis, como o AQUA-HQE?
Estamos evoluindo bastante em todos os certificados ambientais, como AQUA-HQE, LEED, GBC Brasil Casa e Condomínio. Existe um aumento do interesse do mercado imobiliário neste aspecto, porque os pioneiros já demostraram que o empreendimento sustentável não vai aumentar aquele custo de produção, muito pelo contrário.
Estamos sim no caminho certo. Eu tive a honra e o prazer de participar desde o início da adequação do AQUA-HQE à realidade brasileira. O estudo de pós-doutoramento dentro da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP) com a universidade Pierre Mendès-France, em Grenoble (FRA), criou mecanismos para podermos trazer o processo de certificação para o Brasil.
Começamos com edifícios corporativos, um ano depois entramos com edifícios habitacionais e hoje nós temos uma gama de referenciais técnicos que podem ser adotados em qualquer tipo de tipologia de empreendimento.
Começamos com exigências mais básicas, para fazer uma adequação com o padrão normativo brasileiro e, hoje, o próprio mercado de fornecedores de materiais, produtos e normas técnicas também evoluiu. Evolui norma técnica, evolui qualidade de produto e materiais que são fornecidos pelo mercado, o processo de certificação também aumenta a régua.
Estamos em um caminho correto. Acredito muito no poder das certificações ambientais para melhorar, incrementar e fomentar uma mudança cultural e no processo construtivo no Brasil.
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As mulheres têm que continuar estudando, trabalhando com pesquisa, buscando espaço por meio da divulgação do conhecimento.
Encontrou alguma dificuldade no começo de carreira por ser mulher e estar em um segmento onde a presença de homens é maior?
Não foi só no começo de carreira. Encontro dificuldades até hoje, infelizmente. Tentamos fugir desse estereótipo, mas não dá. Eu sou mulher e nordestina. Existe dificuldade sim. Eu sou mais respeitada na França, onde fiz meus estudos e tenho uma relação profissional ativa até hoje do que aqui no Brasil. Eu me sinto mais respeitada lá.
Se você está em uma reunião de mercado imobiliário ou normativa na França e apresenta o seu currículo, ninguém olha se é mulher ou homem. Tenho graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado. Eles olham o seu currículo.
No Brasil não é assim, infelizmente. A mulher tem que apresentar o currículo todos os dias e demonstrar que ela é competente e, ao mesmo tempo, ela tem que ser elegante, feminina e aguentar a dúvida constante. Eu vou em reuniões no Brasil e a maioria têm nove homens e apenas uma mulher na mesa. Homens que, em alguns casos, têm um conhecimento inferior ao da mulher. Mas na hora em que ele fala, os nove homens olham.
Na vez da mulher é preciso falar em um outro tom, de uma outra forma, com uma outra força para poder ser ouvida. Então, sim. Ainda hoje, no auge da minha carreira, depois de anos de pesquisa e trabalho, é difícil ser respeitada e reconhecida no mesmo padrão que o homem.
O profissional do sexo masculino cresce mais rápido, evolui mais rápido na carreira. Muitas vezes já escutei no mercado de trabalho: por que vocês mulheres precisam ter um salário mais alto? O que você ganha não é suficiente para pagar o cabeleireiro? Eu já ouvi isso.
As condições que as mulheres têm hoje não são ainda as mesmas que os homens têm. Sem falar do assédio. Isso acontece e você pergunta: está acontecendo porque demos um sorriso ou porque o mundo é machista mesmo? Dá um nó na cabeça e isso é muito cruel. Pois, não podemos ao mesmo tempo ser competente e ser mulher.
As mulheres que são líderes estão sempre sisudas e sérias, vestidas como homens. O meu sonho é que uma mulher possa chegar em um alto cargo executivo vestida como ela quiser, não necessariamente ter que criar uma imagem masculina para ser ouvida.
Quais são os principais trunfos e qualidades que as profissionais do sexo feminino têm nesta área? O que as mulheres podem trazer de diferente dos homens?
Eu não vou muito pela linha da diferenciação do homem com a mulher. Em linhas gerais, o lado feminino – e que alguns homens também possuem – despertam a capacidade de ser multitarefa. Mas, algumas mulheres não têm esse instinto também. A maioria das mulheres têm um instinto menos diretivo, o homem é ao contrário, é mais automático nesse aspecto.
A criação feminina ensina a olhar a situação de uma forma mais global. Existe uma sensibilidade na condução da resolução do problema. Não necessariamente isto leva à uma demora na tomada de decisão. É um ganho. Se todas as mulheres valorizassem isso, iríamos crescer mais. E se os homens conseguissem incorporar isso também seria um sucesso.
A solução seria mais educativa do que diretiva ou política para mudar o quadro atual?
Eu acredito na educação. As mulheres têm que continuar estudando, trabalhando com pesquisa, buscando espaço por meio da divulgação do conhecimento. À medida que vamos divulgando e conquistando conhecimento, vamos crescendo.
Quando comecei minha carreira tinha menos espaço do que hoje. Atualmente, me sinto uma mulher realizada profissionalmente. Uma entrevista para o Dia Internacional da Mulher é uma conquista muito grande para a minha carreira. Consegui isso com conhecimento e com educação. Não acredito muito em medidas políticas, pelo contrário, às vezes existem medidas políticas que só atrapalham o processo.
Quais são os próximos projetos da proActive?
A proActive, de uma maneira geral, trabalha sempre com muita pesquisa em parcerias com a Universidade de São Paulo (USP) e com universidades internacionais. Nosso próximo projeto vai ser criar uma linha de trabalho que avalie a qualidade dos bairros e das cidades inteligentes. Estamos trabalhando de uma maneira intensa no assunto que o mercado chama de Smart Cities.
Hoje, a gente pretende aumentar a inserção de construção habitacional sustentável no mercado. Temos mais ou menos 1% do mercado de São Paulo e a nossa meta é aumentar para 20% nos próximos 10 anos. Para isso, vamos divulgar conhecimento, quebrar paradigmas, propor discussões em seminários, eventos e veículos de grande circulação nacional, como o portal Going Green Brasil.
O intuito é mostrar para todas as partes interessadas que a construção sustentável é o melhor caminho. Pretendemos trabalhar de forma integrada com o setor público, no que chamamos de bairros e cidades inteligentes. Sempre aproveitando o conhecimento que temos no exterior e laço muito estreito que a empresa tem com a França.